Hoje resolvemos falar um pouco sobre um livro espetacular: Vidas Secas. Trata-se de um romance publicado por Graciliano Ramos em 1938.
Graciliano Ramos foi um dos expoentes do modernismo brasileiro. Nasceu em Quebrangulo, Alagoas, em 27 de outubro de 1892 e faleceu em 20 de março de 1953, no Rio de Janeiro. A crítica literária o considera o maior romancista moderno do Brasil, principalmente por ter explorado com maestria temas fortes como a violência, a morte e a luta pela sobrevivência.
Vidas Secas, esse romance genial enfoca especialmente essa luta pela subsistência quando o ser humano se encontra nas condições mais precárias possíveis. O autor consegue penetrar profundamente no íntimo dos personagens, retratando fielmente os mais variados sentimentos.
Fabiano, o personagem principal do livro, é o típico homem moldado de acordo com o meio em que vive. Socialmente oprimido, muito simplório, de idéias curtas, o protagonista tem dificuldade em se comunicar e se ressente disso. Ora se reconhecendo como homem, ora como “bicho”, o personagem está sempre se sentindo inadequado. Sua ignorância o constrange.
Abaixo, segue um trecho dessa obra-prima. Aproveitem!
“Festa
Fabiano, sinha Vitória e os meninos iam à festa de Natal na cidade. Eram três horas, fazia grande calor, redemoinhos espalhavam por cima das árvores amarelas nuvens de poeira folhas secas.
…
Fabiano estava silencioso, olhando as imagens e as velas acesas, constrangido na roupa nova, o pescoço esticado, pisando em brasas. A multidão apertava-o mais que a roupa, embaraçava-o. de perneiras, gibão e guarda-peito, andava metido numa caixa, como tatu, mas saltava no lombo de um bicho e voava na catinga. Agora não podia virar-se: mãos e braços roçavam-lhe o corpo. Lembrou-se da surra que levara e da noite passada na cadeia. A sensação que experimentava não diferia muito da que tinha tido ao ser preso. Era como se as mãos e os braços da multidão fossem agarrá-lo, subjugá-lo, espremê-lo num canto de parede. Olhou as caras em redor. Evidentemente as criaturas que se juntavam ali não o viam, mas Fabiano sentia-se rodeado de inimigos, temia envolver-se em questões e acabar mal a noite. Soprava e esforçava-se inutilmente por abanar-se com o chapéu.
Difícil mover-se, estava amarrado. Lentamente conseguiu abrir caminho no povaréu, esgueirou-se até junto da pia de água benta, onde se deteve, receoso de perder de vista a mulher e os filhos. Ergueu-se na ponta dos pés, mas isto lhe arrancou um grunhido: os calcanhares esfolados começavam a afligi-lo. Distinguiu o cocó de sinha Vitória, que se escondia atrás de uma coluna. Provavelmente os meninos estavam com ela. A igreja cada vez mais se enchia. Para avistar a cabeça da mulher, Fabiano precisava estirar-se, voltar o rosto. e o colarinho furava-lhe o pescoço. As botinas e o colarinho eram indispensáveis. Não poderia assistir à novena calçado em alpercatas, a camisa de algodão aberta, mostrando o peito cabeludo. Seria desrespeito. Como tinha religião, entrava na igreja uma vez por ano. E sempre vira, desde que se entendera, roupas de festa assim: calça e paletó engomados, botinas de elástico, chapéu de baeta, colarinho e gravata. Não se arriscaria a prejudicar a tradição, embora sofresse com ela. Supunha cumprir um dever, tentava aprumar-se. Mas a disposição esmorecia: o espinhaço vergava, naturalmente, os braços mexiam-se desengonçados.
Comparando-se aos tipos da cidade, Fabiano reconhecia-se inferior. Por isso desconfiava que os outros mangavam dele. Fazia-se carrancudo e evitava conversas. Só lhe falavam com o fim de tirar-lhe qualquer coisa. Os negociantes furtavam na medida, no preço e na conta. O patrão realizava com pena e tinta cálculos incompreensíveis. Da última vez que se tinham encontrado houvera uma confusão de números, e Fabiano, com os miolos ardendo, deixara indignado o escritório do branco, certo de que fora enganado. Todos lhe davam prejuízo. Os caixeiros, os comerciantes e o proprietário tiravam-lhe o couro, e os que não tinham negócio com ele riam vendo-o passar nas ruas, tropeçando. Por isso Fabiano desviava daqueles viventes. Sabia que a roupa nova cortada e cosida por sinha Terta, o colarinho, a gravata, as botinas e o chapéu de baeta o tornavam ridículo, mas não queria pensar nisto.”
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